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O violonista Lula Galvão e a renovação harmônica da música brasileira

Postado em Coluna Conrado Paulino em 27/10/2020

(Lula Galvão)

Por Conrado Paulino

Especial para o Acervo Violão Brasileiro

Todo brasileiro lembra onde estava no inesquecível dia do "sete a um". Da mesma forma, todo violonista e guitarrista lembra a primeira vez que ouviu Lula Galvão tocar, tal o impacto que provoca nos músicos. Pode parecer exagero mas, além de ser esse o meu caso, é também o de vários colegas com quem conversei e com quem comparto a admiração por esse violonista, guitarrista, arranjador e compositor brasiliense de primeira linha. E como mostra seu mais novo disco, Alegria de Viver (laçando em 2019), ele conseguiu superar a si mesmo, o que por si só já é uma façanha.

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Mas antes de falar do novo disco, quero puxar da memória o seguinte. Em algum dia em meados dos anos 1990 estava eu no antigo Melograno, o restaurante que o querido e grande saxofonista Hector Costita tinha na Vila Madalena, em São Paulo. A casa tinha música ao vivo de qualidade e, nos intervalos, som ambiente idem. Num desses intervalos levei um jab duplo, que me deixou atordoado: estava ouvindo pela primeira vez a magnífica Rosa Passos e o nosso Lula Galvão.

(Clique e ouça faixas selecionadas do CD)

O CD era Curare e a música era Dindi, de Tom Jobim, que já começava com uma bela introdução. Tudo era maravilhoso: a Rosa cantando lindamente, atrasando propositalmente no limite do possível, a música divinamente rearmonizada, a inesquecível 4ª aumentada do começo do 3° “A”... e aí, lá pela metade da música, entra um improviso de violão impressionante, supermoderno e, ao mesmo tempo, melodioso; ousado na escolha das notas, porém, nem um pouco “cerebral” ou forçado. Era diferente de tudo que tinha ouvido até então. Era tudo coisa musical, como diz Aldir Blanc. 

Candeias

Foi realmente impactante e, pouco depois desse dia, descobri uma legião de colegas que tinham experimentado o mesmo abalroamento. A única diferença era que alguns ouviram em primeiro lugar o ainda mais impressionante solo que o mestre Lula fez em Candeias, de Edu Lobo, no disco seguinte de Rosa Passos, Festa. Aliás, por sorte não foi esse solo o primeiro que ouvi dele. Caso contrário, talvez eu estivesse hoje exercendo outra profissão.

A partir desse momento passei a acompanhar à distância a sua carreira. Ele vinha para São Paulo pelo menos uma vez por ano acompanhando Rosa Passos. Já era musical e profissionalmente um músico fora da curva e muito bem-sucedido. Mas a sua carreira cresceu mais ainda, sendo chamado para tocar com Caetano Veloso, Chico Buarque, Ivan Lins, Ron Carter, Paquito de Rivera, Gal Costa, Edu Lobo, Jaques Morelenbaum e muitos outros.

E não foi só a carreira profissional de Lula Galvão que cresceu. Ele mesmo, enquanto artista, amadureceu ainda mais. E soa até estranho falar da "maturidade" dele porque a sua música já era "madura" e original no começo da década de 90.

Vou Vivendo

Voltando aos anos 1990, foi graças a Lula Galvão que conheci outro mega-mestre, o genial Guinga, com quem ele continua se apresentando. Foi num inesquecível show, apenas os dois tocando em total sintonia, no lendário bar paulista Vou Vivendo.

As composições endiabradas de Guinga e os solos mais endiabrados ainda de Lula em cima das harmonias supercomplexas dessas composições me deixaram maravilhado. Na verdade, até hoje fico entre deliciado e surpreso com a capacidade dele improvisar sobre essas harmonias “tortas” – como nós músicos chamamos - com tanta fluência e musicalidade.

Nesse show com Guinga, assim como em todos os shows que o traziam para São Paulo, eu lhe perguntava pelo seu CD. Queria comprar um disco só dele (eu, e todos os violonistas e guitarristas do país). Anelava ouvi-lo como líder, mostrando seu trabalho como artista. Mas a resposta era sempre a mesma: “vou fazer...ainda não tive tempo...estou planejando fazer, mas...” E os anos foram passando e nada de um CD para chamar de seu.

Bossa da minha terra

Mas esse descompasso entre o “profissional de alto nível” e o “artista” era justificável. Infelizmente para os seus admiradores, era razoável que, sendo o violonista/guitarrista mais requisitado do país e com frequentes turnês para o exterior, não sobrasse tempo para um trabalho próprio (é o que eu sempre digo: “o urgente se sobrepõe ao importante”).

Apenas em 2009, e por insistência – e encomenda - de um produtor japonês, saiu o excelente Bossa da minha terra. As harmonias maravilhosas e os solos endiabrados estavam todos ali, além dos seus arranjos de sonoridade tão característica.  

Na retaguarda, um timaço: Idriss Boudrioua no sax, Rafael Barata na bateria, Sergio Barroso no contrabaixo e Fernando Moraes no piano, além das participações especiais de Claudio Roditi, Raul de Souza, Rosa Passos e Mauricio Einhorn. Mas apesar de o disco ser magnífico, ainda não era exatamente o que ele queria. Um dos motivos foi que, por uma questão de contrato, o mestre Lula não teve a liberdade que desejava para escolher o repertório.

Na realidade, esse CD não era exatamente o primeiro. Em 1997 havia sido lançado um trabalho estupendo: o CD Letra e Música: Ary Barroso. Mas esse era um disco compartilhado com Rosa Passos e com o repertório escolhido pelo produtor do trabalho, o saudoso Almir Chediak.

Alegria de Viver

Somente em 2019 saiu o seu segundo CD como líder e o seu primeiro álbum de violão solo. E finalmente as preces da comunidade violonista e guitarrista foram atendidas. Trata-se do magnifico Alegria de Viver.
Mas talvez seria mais adequado chama-lo de “Alegria de ouvir”.

Dá a impressão que o Lula quis compensar os admiradores por tantos anos de paciente espera. De início, o repertório e principalmente a escolha dos compositores já evidencia o bom gosto, conhecimento e alto nível do artista e de seu trabalho. Escolher –e revisitar – Johnny Alf, Luiz Eça e Guinga, entre outros, não é para fracos.

E o que dizer da já muito comentada releitura de Carinhoso, o mega clássico de Pixinguinha tantas vezes gravado? É necessário muita criatividade – e coragem -  para justificar musicalmente mais uma gravação dessa composição, desafio que Lula superou além das expectativas.

Para o leigo, o disco todo é um desfrute do início ao fim. Para o músico, aulas e mais aulas de harmonia, improvisação, arranjo, criatividade e brasilidade. É de fato é um disco que o diletante desfruta, e o profissional dá cambalhotas de assombro a cada acorde.

É que Lula Galvão, junto com o mestre Guinga - e ambos influenciados por Toninho Horta - é responsável pela notável renovação harmônica da música popular brasileira, uma renovação que agora cristaliza-se no trabalho dos novos compositores.

Trata-se de uma renovação que alarga as fronteiras da harmonia moderna, “empurra” seus limites para além dos caminhos usados hoje em dia na música popular mais sofisticada. E já há estudos e trabalhos acadêmicos analisando essa nova harmonia, fato que mostra a dimensão e importância dessa renovação.

Para citar apenas um exemplo (e dos mais simples) eu não esqueço do susto que levei ao ouvir os compassos próximos do final do tema do arranjo dele de Morena boca de ouro no citado CD “Rosa Passos & Lula Galvão: Ary Barroso Letra e Música”, quando ele troca o clássico IVm6 que todo mundo toca após um II_V > IV, por um incrível VII7(b9)(13) (no caso, a música está em Sol maior e ele trocou o Cm6 pelo F#7(b9)(13) ).

Aliás, para ficar somente no impacto do trabalho de Lula Galvão nos violonistas, a comparação com João Gilberto é muito pertinente. Quando João surgiu todos levaram um choque e se perguntavam “que acordes são esses?” É a mesma reação que Lula Galvão provocou trinta e poucos anos depois. Justiça seja feita, pode-se afirmar a mesma coisa com relação a Toninho Horta e, posteriormente, Guinga.

É por isso que Lula Galvão, Guinga, Toninho Horta e outros (poucos) artistas não são somente grandes violonistas, instrumentistas ou compositores. São grandes músicos, são artistas que a sua aparição no cenário mudou – em maior ou menor medida - o caminho, a estética e a sonoridade da música brasileira. Isso é privilégio de poucos. E um privilégio para os seus contemporâneos. E eu, e todos nós, temos a felicidade de sermos privilegiados.

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