Morre o professor, compositor e regente Ernst Mahle, aos 96 anos
(Ernst Mahle)
Por Alessandro Soares e Geovany Hércules
“A gente passou a manhã e a tarde conversando. Com seu sotaque peculiar, ele me contou vários fatos de sua longa vida. Conversamos sobre a divergências de edições, a exemplo das Sinfonias de Beethoven. E sobre o que era música. Com o passar dos anos, ele chegou à conclusão de que a melhor música era feita ao vivo e de maneira acústica. Depois toquei a suíte e ele gostou bastante. Era um ser humano fantástico!”.
Assim o violonista e professor da UFMS Pieter Rahmier recorda em depoimento ao Acervo o tempo do mestrado, quando conheceu pessoalmente em 2013 o professor, compositor e regente Ernst Mahle, que morreu na noite desta segunda-feira (12/05) aos 96 anos. A pesquisa de Pieter é a Suíte Para Violão de Ernst Mahle: uma edição crítica, que pode ser baixada aqui.
Em post no Instagram, o grande violonista Fabio Zanon destaca: “A gente não faz ideia da enormidade de Ernst Mahle. Compositor irretocável, um grande educador, a pessoa mais devotada à causa da música brasileira, que dispôs generosamente de seus recursos pessoais para avançar a educação musical em nosso país. Ele nos deixa na paz de quem mudou para melhor o destino de centenas de pessoas”.
(Fabio Zanon e Ernst Mahle)
Autor de mais e 2 mil obras, Ernst Mahle nasceu em Stuttgart, Alemanha, em 3 de janeiro de 1929, numa tradicional família de engenheiros. Ainda na Europa estudou flauta doce quando estava no primeiro grau da escola. A família Mahle se mudou para Áustria por causa da Segunda Guerra. Foi lá que Ernst terminou a escola e iniciou seus estudos de piano e composição no Conservatório de Stuttgart com o compositor austríaco Johann Nepomuk David.
Chegou no Brasil em 1951, ainda dividido entre a música e a engenharia. Caso quisesse a música, seu pai o incentivou a procurar uma escola. E foi assim que ele ingressou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e na Escola Livre de Música Pró-Arte, onde foi aluno do professor, compositor e musicólogo Hans-Joachim Koellreutter. Ali conheceu Maria Apparecida Romero Pinto, aluna de regência de Koellreutter, que se tornou a sua esposa e companheira de toda vida, conhecida carinhosamente como Cidinha.
Em 1953, junto com Cidinha, Koellreutter e outro colegas, fundou a Pró-Arte de Piracicaba, hoje Escola de Música de Piracicaba Maestro Ernst Mahle (EMPEM), pertencente ao Instituto Educacional Piracicabano da Igreja Metodista. Ernst Mahle exerceu as funções de diretor artístico, professor e maestro da Pró-Arte de Piracicaba por mais 50 anos.
Foi por causa de seu trabalho como professor que Ernst Mahle começou a compor. Desta forma Ernst Mahle criou um catálogo de obras para os mais variados instrumentos. Também escreveu as óperas Maroquinhas Fru-Fru, (1974), com libreto de Maria Clara Machado; A Moreninha (1979), com libreto de José Maria Ferreira; O Garatuja (2006), com libreto de Eugénio Leandro, e Isaura (2022), com libreto de Marcelo Batuíra.
Para orquestra de cordas, Mahle escreveu diversas obras que se encontram entre as mais tocadas do repertório brasileiro como a Suíte Nordestina, a Sinfonietta e o Divertimento Hexatonal
Para o violão, por exemplo, escreveu a obra Diálogo para violão e cordas, de 1971. A Biblioteca do Acervo tem pesquisa sobre esta obra escrita por Guilherme Arce, sob o título Estudo analítico e interpretativo da obra Diálogo para violão e cordas de Ernst Mahle (2020). Em depoimento ao Acervo, Guilherme Arce afirma que a obra violonística de Mahle reflete características de seu pensamento musical, de sua trajetória enquanto um compositor filosoficamente comprometido com a educação musical e de seu profundo conhecimento em relação às potencialidades do violão.
Dentre as mais de 23 obras dedicadas ao instrumento, segundo Arce, predominam obras de câmara, o que expressa sua crença na importância da prática musical em grupo para a formação ampla de um músico. “Seu compromisso com a pedagogia se observa na escrita de obras frequentemente acessíveis do ponto de vista técnico-mecânico, mas cujos discursos musicais apresentam intrincadas articulações de elementos musicais contrastantes”.
Ainda para Arce, o idiomatismo que se observa em quase todas as obras de Mahle para violão é reflexo de seu profundo conhecimento em relação às potencialidades sonoras do instrumento. “Sua escrita emprega recursos técnicos próprios do instrumento em contextos tonais que conferem ao violão uma sonoridade robusta”.
(Pieter Rahmier)
E o que será de conteúdos ainda inéditos sobre a música de Ernst Mahle? Respondedo a essa pergunta ao Acervo, o violonista Pieter Rahmier nos revela pelo menos uma. “Eu e os demais integrantes do Toccata pedimos uma obra ao Mahle, que a compôs e dedicou ao quarteto. Isso foi em 2015. É uma peça incrível, que tocamos várias vezes, mas ainda não foi gravada. Mas chegará esse momento.” Pieter espera que espero que mais músicos descubram a música dele, que “merece ser mais executada, mais tocada e mais pesquisada”.
Quem também se despediu com carinho especial por meio de um comentário no Facebook do Acervo foi a pesquisadora e violonista Flávia Prando. “Ernst Mahle era querido demais. Tenho lembranças incríveis deste músico e ser humano maravilhoso, que deixou tantas músicas e afetos. Certamente iluminará onde estiver”.