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Luthier Mario Jorge Passos, um Homem da Renascença

Postado em Cartas de amor em 24/02/2022

(Mario Jorge Passos - arquivo particular: Ricardo Dias)

Por Ricardo Dias (*)

Especial para o Acervo Violão Brasileiro

-Mario, onde eu compro esse parafuso? Não tem em canto nenhum.

-Deixa ver... Ah, tem na Rua Tal, loja Tal. Você mostra no balcão, o vendedor vai dizer que não tem, mas diga a ele que tem sim, está na terceira gaveta debaixo do balcão, junto com umas porcas especiais.

Claro, estava lá.

-Mario, tô aqui perdido, preciso ir para a rua Tal (não, não era a rua Tal da história anterior).

-Está exatamente aonde?

-Rua Tal, esquina com avenida Tal.

-Virado para que lado?

-Direito...

-Pois ande 3 quarteirões em frente, vire à direita e entre na segunda à esquerda.

Sem titubear.

(Mario Jorge Passos - arquivo particular: Ricardo Dias)

-Mario, onde compro manteiga de iaque temperada com jiló da Bavária?

-Ah, vai cozinhar um XPTO! Não usa isso não, compra o creme de queijo de alpaca com trufa roxa do Afeganistão, fica muito melhor. E tem na rua Tal...

Conviver com Mario – Mario Jorge Scafuto Passos – era dividir a vida com uma enciclopédia. Ele sabia de tudo um pouco. Claro, chutava loucamente também, o que dava emoção às consultas. Era uma wikipedia, na verdade: muita coisa certa, mas um certo suspense quanto à exatidão.

Aprendi minha profissão com ele, anos 80. Fui levar meu violão para consertar, gostei dele, gostei da oficina, e fui amiudando as visitas. Quando dei por mim, era seu auxiliar. E nunca era monótono...

-Cadê o formão X?

-Não sei.

Procura aqui, procura ali, vira a oficina de cabeça para baixo. De repente, o brado:

-QUEM FOI QUE COLOCOU O FORMÃO NO LUGAR CERTO????????

(Cesar Tessarin, Mario Jorge, Ricardo Dias, Sergio Abreu e Vicente Paschoal - arquivo particular: Ricardo Dias)

Também era dado a cismas. Quando resolvia algo, aquela era a ÚNICA forma correta de fazer as coisas, quem não o fizesse seria condenado ao inferno e seus descendentes declarados malditos. Resolveu que a filetagem dos violões deveria ser feita com cola quente. Se você não sabe o que é isso, não se preocupe, apenas imagine: diversas fitinhas finas de madeira sendo coladas juntas e presas ao violão, uma confusão tremenda. Mas escorrendo pelos seus dedos uma cola meio fedida, fervendo...

Tempos depois, tendo que repetir a tarefa em outro instrumento, fui perguntar onde estava a cola.

-Pra quê?

-Pra filetar!

-Usa cola americana, ora.

-Mas e a cola quente?

-Bobagem, dá muito trabalho!

-Mas você me encheu o saco para usar essa porcaria!

-E você acredita em tudo o que eu falo?

(Mario Jorge Passos - arquivo particular: Ricardo Dias)

Aí se desinteressou pela luteria e foi se meter com computadores. Apple Macintosh. Claro, me arrastou junto. Em pouco tempo ficamos amigos do pessoal da área, então um gueto. Pedro Doria, que na época era um macmaníaco, Ricardo Serpa, que tinha uma coluna no Jornal do Brasil, Mario acabou escrevendo n’O Globo, onde Marco Fadiga tinha coluna. Mario acabou tendo a dele. Gostei da ideia e resolvi ter uma também. N’O Dia, jornal popular do Rio de Janeiro. Mas eu era – e sou – preguiçoso. Minha coluna saía primeiro, então eu desinteressadamente conversava com eles sondando sobre o que escreveriam – ele e Serpa. Então escrevia primeiro. Até que umas 3 semanas depois me passaram um assunto e escrevi, todo contente.

Era falso, combinaram antes. Ou seja, não se pode confiar nas pessoas! Especialmente no Mario Jorge.

A época de transição entre luteria e computação foi complicada. Ele largou a oficina de mão. Um cliente/amigo mandou um fax (na época era assim, a pessoa escrevia e saía impresso na casa do ouro. O papel era meio caro), uma palavra por página:

Mario

Jorge

:

Enquanto

você

E seguia, folha por folha: não-entregar-meu-violão-vou-gastar-TODO-o-teu-papel-de-fax-!

Mario, claro, tomou uma atitude: guardou os faxes, por considerá-los geniais, e continuou demorando.

Se escrevo hoje devo em parte a ele. Me incentivou a sair da casca, perder a timidez. Outra atividade que desempenho hoje começou com ele, também: produção de discos. A primeira vez em que entrei num estúdio foi num CD em cuja produção ele colaborou, Raphael Rabello, 1988. Entrei com medo de atrapalhar e não quis mais sair.

Além de mudar toda a minha vida, ainda me presenteou com uma afilhada, sua filha, a grande cantora Alice Passos. E de tabela acabei padrinho de Laura, filha mais velha de Leila, sua última companheira.

Seus filhos eram um capítulo à parte. Pedro, Alice e Elisa, quando crianças, eram as mais bem-dotadas da história da humanidade. Seus enteados, Mariana, Mathias e Laura, apenas meio degrau abaixo. TUDO que faziam, a seus olhos apaixonados, era superlativo. Aliás, ele estendia esse amor aos amigos: todos eram perfeitos. Os inimigos dos amigos, seres desprezíveis. Apesar de racional ao extremo, passional. Um tanto bipolar.

Mario Jorge, meu amigo Scafuto, mudou a vida de muita gente à sua volta. Ao longo do dia me pego pensando nele de várias formas, seja vendo alguma novidade tecnológica, seja tendo alguma dúvida aleatória, seja ouvindo uma música diferente... Ainda é difícil pensar nele no passado, tenho a desconfiança que ainda vou carregá-lo comigo por muitos anos. Cada ferramenta, cada texto, cada produção, ali terá o dedo dele.

O elogio que ele mais gostava era ser “Um Homem da Renascença”,  expressão antiga que significa uma pessoa que domina diversas matérias com igual competência. Meu amigo Scafuto foi isso. Vou evitar os lugares comuns associados à morte, ele não merece esse tipo de coisa.

Não, pensando bem, merece SIM! Quem manda morrer fora de hora? Então Mario deixou uma enorme lacuna, Mario é insubstituível, Mario é bom pai, bom filho e bom marido e Mario deve estar batendo papo com Steve Jobs, explicando para ele como funciona um Mac. Inté, companheiro.

 

*Ricardo Dias é luthier, escritor e produtor musical

Tags: Ricardo Dias
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