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Leo Brouwer, nosso norte

Postado em Artigos em 15/01/2020

Leo Brouwer, nosso norte - Leo Brouwer e Giacomo Bartoloni, 2009. Arquivo particular Fábio Bartoloni

(Leo Brouwer e Giacomo Bartoloni, 2009 / Arquivo particular Fabio Bartoloni)

Por Fábio Bartoloni*

(Especial para o Acervo Violão Brasileiro)

Os 80 anos de Leo Brouwer representam um acontecimento mais do que especial dentro da história do violão. Brouwer continua em plena atividade, mas em 2019 já deu para olhar para sua trajetória e pensar numa obra completa, numa missão mais do que cumprida. De compositor precoce (se compará-lo a Mozart pode parecer exagero, a comparação com Mendelssohn é válida, já que ambos tem obras-primas escritas ainda adolescentes), passando pelo violonista que abriu as portas da vanguarda para o instrumento, até chegar à chamada nova simplicidade, termo que define suas obras das últimas décadas, a verdade é que o violão tem muito a agradecer a Brouwer.

Vamos voltar um pouco no tempo, mais precisamente até a metade desta trajetória. Em 1979 Brouwer estava completando 40 anos de idade e já tinha inserido sua obra na história violonística. Já era autor de todas as geniais obras de sua juventude, tão bem acabadas formalmente falando, mas também extremamente idiomáticas. Depois disso, teve contato com a vanguarda e sem ser egoísta, trouxe-a para o violão. Obras que deram novo pilar ao repertório violonístico, como Elogio de la Danza, Canticum (que Pujol afirmou ser a obra mais importante da história desde a Homenaje de Manuel de Falla), Tarantos e finalmente La Espiral Eterna, entre outras.

Estas obras causaram impacto em todos os violonistas do mundo, inclusive um jovem de 21 anos, estudante de Henrique Pinto e que também compunha. Giacomo Bartoloni já era um entusiasta da obra de Brouwer e tocava várias de suas obras no Brasil nos anos 1970, desde os tempos de aluno e depois professor da Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Em 1979 ele participou do Seminário Internacional de Violão da Faculdade Palestrina e inscreveu sua recém-terminada obra Ditirambo, Homenagem a Leo Brouwer no concurso de composição, obtendo o primeiro lugar.

A peça faz referências a todas essas obras pilares para violão de Brouwer, contendo citação do tema da Fuga n.1, acordes e motivos presentes na Danza Caracteristica e tem sua forma e estrutura inspirada em Elogio de la Danza. Engana-se quem pensa que há uma colagem de elementos de Brouwer, pois Giacomo toma emprestado estes como matéria bruta e os processa de maneira inteligente, eficaz e poética pra fazer uma música sua.

O título Ditirambo faz referência ao segundo movimento do Canticum. Título este que foi alterado na publicação para somente Ditirambo, pois a Ricordi ficou com receio de represália pela ditadura militar se a homenagem a um músico de Cuba fosse feita. Eram outros tempos?

De qualquer maneira, o título original e verdadeiro foi divulgado em grande ocasião, durante o I Festival Leo Brouwer em São Paulo em 2008, quando Giacomo tocou a peça com o homenageado na plateia. Ao final, Brouwer foi cumprimentá-lo, agradecê-lo e dizer que “tua música tem muita poesia”. Não é preciso dizer que receber um elogio de um ídolo é algo lisonjeador, e Giacomo sentiu-se impulsionado a escrever uma nova peça em homenagem a Brouwer.

A concretização da peça acabou ocorrendo somente em 2016, quando este escritor estava cursando seu doutorado em performance nos Estados Unidos e pediu uma obra inédita para o professor e pai. Nasce a Sonata Retratos, uma obra de Giacomo dividida em quatro movimentos que, no final, prestou homenagem não só a Brouwer, mas também a Manuel Ponce e Mario Castelnuovo-Tedesco.

Retorno ao tonalismo

A composição de El Decameron Negro em 1981 inaugura a terceira fase de composição de Brouwer, na qual ele retorna ao tonalismo e a uma escrita mais convencional, ou menos radical. Mas é mais do que isso. Na verdade, entendemos que esta fase representa uma maturidade do compositor, uma liberdade autoconcedida para escrever música como quiser, sem a necessidade de ser experimental ou conservador, como podemos verificar. É uma fase que tem uma nova simplicidade embutida, mas esta é de fato plural, abarcando tudo: contraponto modal renascentista, The Beatles, Takemitsu, Gismonti, Bach, Scriabin,... Por exemplo, os Nuevos Estudios Sencillos são um dos retratos desta fase abrangente.

Assim como a obra de Brouwer, a Sonata Retratos de Giacomo Bartoloni assume esta pluralidade. Presta uma homenagem não só a Brouwer e à modernidade que ele trouxe ao violão, mas também a dois compositores que representam a colaboração com Andrés Segovia e a construção de um novo repertório que aconteceu na primeira metade do século XX. E que por mais conservadora tenha sido a direção que Segovia o deu, nos fez chegar até aqui e transformou a história do instrumento para sempre.

Não vamos entrar aqui em detalhes analíticos da Sonata Retratos, obra formalmente ligada à Sonata do início do século XIX, mas que ao mesmo tempo é até certo ponto programática, só ressaltamos que utiliza quatro afinações diferentes para a sexta corda ao longo dos quatro movimentos (Fá, Mi, Mi bemol e Ré, todas utilizadas por Brouwer) e que no decorrer do programa mostra um diálogo e uma celebração entre todos: Brouwer, Ponce, Castelnuovo-Tedesco, Bartoloni e o intérprete, que aqui representa o violonista do século XXI. Este acaba se confrontando com todo o repertório violonístico, tradicional, moderno, experimental, conservador, clássico e popular.

Parece-nos que a atualidade mescla muito mais as possibilidades de nosso instrumento do que acontecia algumas décadas atrás, e isto é excelente na nossa visão. As fronteiras estão cada vez mais frágeis e o repertório que tem sido composto, tocado e gravado mostra isso. A divisão entre violão clássico e violão popular faz cada vez menos sentido e encerramos esta reflexão dizendo que mais uma vez Brouwer é um dos responsáveis por isso. Nos anos 1960 e 1970 era necessário romper, radicalizar, levar o violão a um lugar que ele não tinha estado ainda. Porém, concluída esta etapa, Brouwer pode nos guiar de volta a uma diversidade que é tão característica do violão, que como Carlevaro disse, “se molda a tudo como água”.

Leo Brouwer, nosso norte - Fábio Bartoloni

(Fábio Bartoloni)

*Fábio Bartoloni é Doutor em Violão Performance pela Arizona State University, Mestre em Música pelo IA/UNESP e Professor de Violão na Universidade do Estado do Amapá.

**este texto foi base da palestra recital Brouwer on Giacomo Bartoloni: the perception of a composer’s work through a gap of 37 years apresentada no Simpósio Hands On na Universidade de Aveiro em  novembro de 2019, onde as duas referidas obras de Giacomo Bartoloni foram tocadas.

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