A música vanguardista de Johnny Alf
(Johnny Alf)
Por Liliana Harb Bollos e Conrado Paulino
Rio de Janeiro, início dos anos 1950. A música criada por Johnny Alf, com suas melodias contrastantes, ritmo sincopado, harmonias inovadoras e canto separado da condução harmônica, está influenciando e transformando a concepção musical de muitos músicos, incluindo figuras centrais do movimento que anos depois mudaria os rumos da nossa música popular brasileira: João Gilberto e Tom Jobim, os ícones da bossa nova.
CLIQUE E CONFIRA - CURSO CONDUÇÃO DE VOZES
O responsável por essa transformação era o compositor, pianista e cantor Johnny Alf, nascido João Alfredo José da Silva (1929-2010), reconhecido como o “verdadeiro Pai da Bossa Nova”. Apesar de ser cultuado por artistas, pesquisadores e um grupo seleto de admiradores, durante muitos anos seu valor não foi plenamente reconhecido na cultura brasileira. Talvez por sua timidez, por ser negro, homossexual ou por não estar nos lugares e momentos certos, poucos brasileiros tiveram o privilégio de conhecê-lo de perto. Mas ainda há tempo de descobri sua música — e, felizmente, ele vem sendo redescoberto pelas novas gerações de músicos e amantes de música de qualidade.
Trajetória: primeiros anos
Alf começou a circular no Rio de Janeiro — então capital federal — no final dos anos 1940, junto com uma geração de músicos que pode ser considerada precursora da bossa nova. Esses artistas já atuavam como profissionais antes do lançamento do mítico LP Chega de Saudade, de João Gilberto, em 1959, considerado a pedra fundamental da Bossa Nova. Entre eles estavam Dick Farney, Lúcio Alves, Tito Madi, Agostinho dos Santos, Os Cariocas, Garoto, Dolores Duran, Radamés Gnatalli, Luís Bonfá e Tom Jobim, entre outros. Nesse contexto, 1946 é um ano marcante, com a gravação de Copacabana (João de Barro / A. Ribeiro) por Dick Farney, que se tornou um grande sucesso popular e é vista como a semente da música popular brasileira moderna.
(Johnny Alf, 1972)
Antes de aproveitar esse sucesso, Dick Farney aceitou um convite para trabalhar nos Estados Unidos, retornando ao Brasil em 1948. Seus fãs fundaram o lendário “Sinatra-Farney Fan Club”, um espaço na Tijuca onde músicos como João Donato, Paulo Moura, Roberto Menescal e o próprio Johnny Alf se encontravam para mostrar suas músicas e fazer suas primeiras apresentações.
A partir de 1952, Johnny Alf começou a se apresentar na Cantina de César de Alencar (então um conhecido radialista carioca), em Copacabana, onde as pessoas já o ouviam interpretar suas composições como Rapaz de bem, Céu e mar, O que é amar e Podem falar. Essas músicas, de sua autoria, eram bastante ousadas para a época, tanto na harmonia quanto na melodia. Depois da Cantina, Alf trabalhou no Monte Carlo, no Mandarim (revezando com Newton Mendonça, parceiro de Tom Jobim), no Clube da Chave e no Hotel Plaza — todos locais de prestígio e boa música - onde continuou a desenvolver seu estilo inovador.
(Johnny Alf)
Segundo João Carlos Rodrigues, no livro “Johnny Alf: duas ou três coisas que você não sabe” (2012, Editora Imprensa Oficial, São Paulo), em 1955 o guitarrista Heraldo do Monte convidou Alf para inaugurar a boite Baiúca em São Paulo, trocando o Rio de Janeiro pela capital paulista.
No mesmo ano, antes mesmo do lançamento do seu primeiro LP, Rapaz de Bem (1961, RCA Victor), a canção Rapaz de Bem foi gravada em 78 RPM e se tornou uma das canções que mais inspiraram jovens em busca do novo, da nova sonoridade. De fato, essa canção permanece moderna, suingada e instigante. Segundo o depoimento de alguns músicos contemporâneos do Johnny, a mudança para São Paulo exatamente nesse ano o afastou do convívio com aqueles que se tornariam os nomes mais conhecidos da Bossa Nova (Roberto Menescal, Carlos Lyra, Marcos Valle, João Gilberto, Tom Jobim, Nara Leão), e o afastou também da cidade onde o novo estilo fervilhava e era produzido (e com a qual ficou associado).
Essa mudança de cidade, somada ao seu caráter calmo e tímido, pode ter contribuído para que o seu nome não fique reconhecido como devia. Importante recordar que o ano decisivo para o surgimento da Bossa Nova foi 1958.
Porém, em 1962 ele voltou para o Rio de Janeiro, onde passou se apresentar no Bottle's Bar junto com o conjunto Tamba Trio, Sérgio Mendes, Luis Carlos Vinhas e Sylvia Telles. Aliás, o mestre Johnny Alf continuou a se apresentar – intercalando períodos de maior ou menor intensidade – até pouco antes do seu falecimento, em março de 2010.
Características musicais de Alf
Embora muito se fale sobre a influência do cool jazz na bossa nova, é importante destacar que, em algumas composições de Johnny Alf, podemos identificar elementos do bebop americano, tanto na evolução harmônica quanto no temperamento brilhante, rápido, vivaz e quase nervoso de sua música. Seu ritmo sincopado de samba trazia inovações que foram assimiladas, aprendidas e, posteriormente, imitadas por muitos jovens músicos, entre eles João Gilberto, que esteve presente em várias apresentações de Alf nas boates do Rio de Janeiro.
Outra característica marcante da música de Johnny Alf é a grande riqueza melódica de suas composições. Suas melodias frequentemente repousam em notas tensas do acorde, os chamados graus altos ou tensões, formando intervalos fortes e muitas vezes dissonantes, o que conferia sofisticação e riqueza tanto na melodia quanto na harmonia, encantando os músicos da época. Por exemplo, nos primeiros compassos de Rapaz de Bem, na tonalidade de Fá maior, a melodia apresenta um Mi, que é a sétima maior de Fá. No terceiro compasso, no acorde seguinte, quando tocada, o Mi funciona como a 11# do acorde Bb7 — tensões melódicas que foram amplamente utilizadas posteriormente por Tom Jobim.
(Alaíde Costa e Johnny Alf)
Além disso, é possível observar que, em suas composições, a voz antecipa ou atrasa a duração das frases, mudando a intenção rítmica, uma característica que posteriormente se tornou marca registrada de João Gilberto, mas que Alf já havia antecipado. Em outros momentos, o piano de Alf, deslocado do contrabaixo e da bateria, cria uma espécie de contraponto entre acompanhamento e melodia, gerando uma sensação rítmica inovadora e original, que renovou a linguagem musical da época.
Legado
O Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira relaciona mais de 80 composições do mestre Johnny Alf. A mais gravada é Eu e a Brisa, lançada pela cantora Márcia no Festival da Record em 1967. Apesar de não ter se classificado para a final, a música entrou no disco e ajudou a popularizá-la. Esse tema, junto a Ilusão à toa e a Nós, formam o trio de baladas românticas mais conhecidas dele e mais tocadas pelos músicos. E além dessas, há outras excelentes composições gravadas por diversos artistas, como Céu e Mar (recomendo a vigorosa versão de Leny Andrade), O que é amar (a versão de Emílio Santiago no disco Feito para Ouvir é a melhor), Olhos Negros (aconselho ouvir a maravilhosa versão de Emílio Santiago com Nana Caymmi, ou a de Caetano Veloso com o próprio autor) e Dois Corações (indico a versão do Johnny no seu disco “Olhos Negros”). Ainda temos Fim de semana em El Dourado e Seu Chopin, desculpe entre as composições mais conhecidas.
Neste dia especial de seu aniversário, brindemos à memória desse grande compositor, com votos de que cada vez mais se ouça e se grave a música vanguardista do excepcional Johnny Alf. Sua obra é um verdadeiro legado de inovação e beleza na nossa música brasileira.